As crianças e os adolescentes de hoje representam o futuro. E, em grande parte, o que fazemos hoje terá um impacto no cenário que deixaremos para eles quando se tornarem adultos. Analisar os desafios tecnológicos e sua relação com os jovens com uma mente aberta, sem demonizar o uso da tecnologia, é fundamental. Isto nos permitirá encontrar abordagens enriquecedoras que nos ajudarão a resolver estes desafios inevitáveis, como o destacado pela antropóloga Mimi Ito sobre como ajudar os jovens a usar a tecnologia para progredir. E embora pensar na tecnologia como aliada dos jovens possa abrir a porta para descobrir as oportunidades que ela pode oferecer, isso não invalida o fato de que existem preocupações legítimas, tais como relatos da crescente exposição de dados pessoais de crianças, ou notícias de alguns anos atrás que alertaram sobre o aumento da demanda por dados pessoais de crianças e adolescentes em fóruns na dark web.

Estes dados chegam a fóruns clandestinos de diversas formas. Por exemplo, como consequência de ataques a crianças que participam de atividades on-line - em redes sociais, plataformas de streaming ou videogames. Os dados expostos também podem ser resultado de ataques de ransomware ou algum outro tipo de malware que rouba informações de hospitais, instituições educacionais ou de empresas que coletam informações de crianças e adolescentes, ou mesmo da incorreta configuração de bancos de dados. E apesar de crianças e adolescentes estarem entrando no mundo digital cada vez mais cedo, e isto tem um claro impacto no roubo de identidade, em alguns casos os dados correspondem a pessoas que nunca abriram um navegador web em suas vidas.

Em países como os Estados Unidos, 1,25 milhões de crianças foram vítimas de roubo de identidade no ano passado, custando às famílias uma média de US$1.100. Os números indicam que 1 em cada 50 crianças foi afetada por um caso de vazamento de dados.

Os dados como fonte para o progresso

Assim como o petróleo mudou o modelo econômico e produtivo do mundo e deu lugar a grandes avanços na humanidade, é provável que a tecnologia e o processamento dos dados resultantes de seu uso tenham um impacto semelhante. As semelhanças entre petróleo e dados como insumo para criar valor popularizou uma frase do matemático Clive Humby, que em 2006 disse que "os dados são o novo petróleo". Não há dúvida de que o processamento de dados e seu uso como fonte de informação tem tido um forte impacto na forma como os problemas são resolvidos, entre outras coisas porque reduz a margem de erro na tomada de decisões sem qualquer tipo de descriminação.

Em 2014, a revista estadunidense Wired disse que, sem dados, o progresso pararia, pois vivemos em uma economia na qual os dados são mais valiosos do que nunca, pois são fundamentais para o bom funcionamento de tudo.

Nesse mesmo ano, outro artigo publicado pela Wired analisou o impacto e a evolução do Big Data - em uma época em que muitos não sabiam exatamente o que o termo abrangia - e colocou o Big Data no mesmo nível de importância para a humanidade como descobertas como o fogo, a roda ou o trigo. Em outras palavras, a capacidade de processar grandes volumes de dados para extrair informações valiosas terá um impacto semelhante no progresso humano.

Em 2020, a atual CEO da Data Robot, Debanjan Saha, afirmou em um artigo explicando como o mundo começou a ser controlado por dados, que na história humana nunca houve tal explosão de informações e que o volume de dados sendo coletado e analisado nesta revolução digital nos oferece, como sociedades, a oportunidade de funcionar melhor no futuro.

O valor dos dados pessoais

E embora as consequências do uso das informações resultantes do processamento de dados tenham desempenhado um papel fundamental, transformando a ciência, as formas de consumo e em muitos casos o que definimos como qualidade de vida, essas informações também têm um lado negativo que devemos abordar, especialmente quando falamos de um tipo de dado em particular: os dados pessoais.

A coleta de dados através da tecnologia tornou-se um grande negócio para as empresas, mas também para os cibercriminosos. Vivemos em um mundo tecnológico no qual as organizações procuram constantemente coletar nossos dados através de aplicativos, plataformas e websites para nos oferecer uma melhor experiência e qualidade de serviço, enquanto em territórios digitais como a dark web há vários anos existe um mercado para a compra e venda de pacotes de dados que são utilizados para ações criminosas como o roubo de identidade e phishings.

Vazamento de dados pessoais de crianças: consequências atuais e futuras

A pesquisadora Emily Wilson, especialista em inteligência de dados na dark web, começou a detectar um crescimento na oferta de pacotes de dados completos de crianças já em 2019. Em um artigo sobre a venda de dados de crianças na dark web, Wilson explicou que na época ninguém acreditava que os dados das crianças pudessem ser úteis aos cibercriminosos, já que sua principal motivação é o dinheiro e as crianças geralmente não têm uma conta bancária em seu nome. Entretanto, ele descobriu que os cibercriminosos estavam encontrando valor nesses dados ao utilizá-los para criar identidades sintéticas.

Uma identidade sintética é criada pela combinação de dados reais de diferentes indivíduos com dados fictícios. Através dessas identidades e do uso de dados reais, tais como números de RG e CPF, os atacantes podem realizar diversas fraudes. Como Wilson explica, explorando a falta de controles que ocorre de forma bastante comum, por exemplo, ao solicitar uma linha de crédito com o número de RG ou CPF de uma criança.

De acordo com alguns especialistas, nos Estados Unidos o problema das identidades sintéticas ganhou mais destaque nos últimos anos. Em parte porque o número do RG sozinho não pode inferir nenhum tipo de atributo da pessoa, e ao combinar o nome do RG de uma criança com uma data de nascimento e endereço, os cibercriminosos podem criar identidades sintéticas para solicitar crédito, e o titular do número pode não ter conhecimento disso até que ele ou ela tenha 18 anos de idade. Mas, além do que acontece nos Estados Unidos com o número de RG, em outros países a exposição de outros dados pessoais, como o número do cartão de RG de uma criança, também pode ser utilizado contra ele ou ela.

Infelizmente, existem serviços que coletam dados pessoais dos cidadãos, incluindo crianças e adolescentes, tais como nome completo, data de nascimento e RG, entre outros, de fontes abertas e os vendem através de relatórios. Por apenas US$ 2, é possível baixar relatórios com informações sobre crianças que incluem nome completo, número de identificação, data de nascimento, endereço físico, localização, CEP, informações do prestador de serviços de saúde ou histórico financeiro, que no caso de crianças e adolescentes aparecem vazios. Mas além da importância desses dados e da facilidade de acesso a essas informações, o fato de esses serviços coletarem todas esse dados também é preocupante devido ao risco de um ataque ao serviço, já que isso poderia expor essas informações.

Como os criminosos conseguem dados de crianças?

Como explicamos no início deste artigo, estes dados pessoais chegam às mãos de cibercriminosos de diversas formas. Além dos traços que as pessoas deixam no mundo digital e do fato de que os maus hábitos de segurança muitas vezes levam à exposição de dados pessoais, fenômenos como o ransomware e o grande número de ataques desses grupos criminosas a hospitais, escolas e universidades ao redor do mundo levaram ao vazamento de grandes quantidades de dados pessoais e sensíveis de crianças e adolescentes.

Em 2021, diversos grupos de ransomware exploraram as fragilidades de instituições educacionais e fizeram com que os dados pessoais de milhares de alunos de escolas primárias e secundárias dos Estados Unidos fossem vazados. Estes vazamentos incluíam dados pessoais tais como condição médica, situação financeira familiar, número do seguro social, data de nascimento ou registros disciplinares que podem ser utilizados por cibercriminosos para o roubo de identidade. E infelizmente, muitas instituições educacionais não estão suficientemente preparadas para proteger esses dados e os adultos responsáveis por essas crianças muitas vezes desconhecem os riscos potenciais ou não sabem o que fazer depois que os dados pessoais de seus filhos são vazados na web.

Conclusão

Quando pensamos no progresso, muitos de nós pensamos no futuro, e se pensamos no futuro, temos que pensar nas crianças de hoje, que serão as que estarão em posições de importância e que tomarão as decisões que irão definir o rumo do mundo. É por isso que é tão importante tentar garantir a igualdade de oportunidades para meninos e meninas. Entretanto, se pensarmos na importância da vida digital no atual cotidiano e que algumas crianças hoje já são vítimas de casos de roubo de identidade sem ter acessado a Internet por seus próprios meios, é muito importante que nos perguntemos o que estamos fazendo para proteger os dados pessoais das crianças e adolescentes no mundo virtual.